sábado, 20 de junho de 2015

Carta a D. - André Gorz

Livro: Carta a D.
Autor: André Gorz
Editora: Cosac Naify
Publicação: 1º reimpressão em 2014.
Número de Páginas: 64
Preço: R$14,60 a R$15,90


Gosto de histórias de amor, gosto de histórias reais e gosto ainda mais de histórias de amor reais.
Contrariando Fernando Pessoa, André Gorz (um dos pseudônimos de Gerhard Horst) escreve uma carta de amor nada ridícula e destituída de palavras esdrúxulas. O livro, que consiste em uma carta escrita pelo autor à sua esposa, é uma verdadeira declaração de amor que começa e termina com uma similaridade tocante das palavras doces que seguem:




O autor explica que precisa dizer a ela estas coisas devido a algumas questões que têm lhe atormentado: o que mais lhe inquieta é o fato de ela estar tão pouco presente no que ele escreveu - quando ela é a coisa mais importante que ele tem na vida - e principalmente o porquê de ele a ter injustiçado nos trechos em que ela se fez presente em seus escritos, mostrando um retrato distorcido da mulher que ama. 
"Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos", diz Gorz, que então passa a contar sobre como começou a história dos dois e como esta se seguiu ao longo dos anos. A narrativa é estruturada de modo que parecemos assistir a como eles se conheceram e entender um pouco da personalidade de ambos, que são pessoas extremamente diferentes.
"Eu não entendia. Não sabia que ligações invisíveis se teciam entre nós." (p.7)
Com uma autocrítica presente ao longo de todo o texto, Gorz admite não ter identidade - rejeitava toda identidade e juntava várias sem que nenhuma fosse realmente dele - e que Dorine (o nome de D.) o dava acesso a uma alteridade que lhe completava, a um mundo que não era o dele. Conhecemos, então, um pouco mais do passado de ambos e as experiências que os levaram a ter algo em comum: uma insegurança quanto ao lugar que ocupavam no mundo que os faria ter de criar um lugar que fosse dos dois. Para tal, ambos sabiam que o amor que sentiam deveria ser um pacto para a vida inteira, mas o autor tinha restrições quanto a isso significar casamento. A princípio ideológicas, as razões dele culminavam, na verdade, no medo de viver algo real:
"Até onde consigo me lembrar, eu sempre procurei não existir." (p.16)
Devido a estas incertezas, ela viaja e o deixa pensar. Ele escreve a ela diariamente. "Eu estava consciente de precisar de você para encontrar o meu caminho; de só poder amar você.".
Ela volta. Ele consegue um emprego e ela por vezes vai ao escritório auxiliá-lo (como faria ao longo de toda a vida). Casam-se; passam por dificuldades financeiras. Ele elogia a capacidade dela de adaptação a toda e qualquer situação adversa. Elogia o quanto ela é forte, capaz e marcante na vida das pessoas. Ela é vivaz; ele, quieto. "Sabia que faz três dias que você não me diz uma palavra?" ela observou em certa ocasião. "Eu me pergunto se, comigo, você se sentia mais solitária do que se estivesse morando sozinha.". Ela, entretanto, sempre o incentivou a escrever - ainda que isso fosse o que o mantivesse tão afastado. Eles conhecem Sartre, a quem ele tanto admira e cita em sua obra - a primeira que virá a ser  publicada dos muitos livros que escreveria ao longo de sua vida autoral.
Ele sente, então, que passou a existir. Ele admite, também, achar que não a merecia.
No período mais político de suas vidas - foram ativistas em maio de 68 -, ela provou ter melhor visão política e, por isso, sempre o ajudou com as redações dos artigos que escrevia para o jornal em que trabalhava. Eles viajavam para comparecer a seminários e voltavam com focos diversos. Ele apoiava seus sentimentos (e tudo mais) em teorias; ela, em vivências. Discutiam sobre isso largamente e ele sempre questionava, ao fim, o porquê de ela sempre ter razão.Ele  entende que essas diferenças eram suas riquezas.

Ele conta, exemplificando com uma série de situações que viveram, como ela sempre esteve presente em sua vida em todos os momentos bons e ruins. Nós sentimos, lendo, o quanto ela foi presente. E em meio à admiração e carinho que a essa altura do livro passamos a sentir por ambos, ele fala, então, sobre ela estar doente.

Uma operação de hérnia de disco com lipidiol a fez ter dores incuráveis. Ela busca alternativas para controle da dor. Eles se interessam por ecologia e tecnocrítica - ele passa, inclusive, a escrever sobre o assunto sob um segundo pseudônimo (Michel Bosquet). Ela descobre um câncer e sobrevive apesar das poucas chances. Como quem quase perde, ele se propõe a se aposentar e viver o presente junto a ela, cuja vida lhe é tão valiosa.  Os dois viveram 23 anos na casa de campo desenhada por ela, no interior de Paris. Neste tempo ele publicou 6 obras, recebeu inúmeras visitas e fez inúmeras entrevistas. Sentindo que não fez jus ao que prometeu a si mesmo, Gorz escreve a carta.

O livro é um pedido de desculpas, mas também um relato de amor, cumplicidade, gratidão e admiração. É uma história real sobre ter alguém no mundo e ser alguém no mundo; sobre autoconhecimento, autocrítica, amor, incentivo e entrega.

André Gorz/Michel Bosquet consagrou-se como um importante filósofo tratando em suas obras sobre existencialismo, economia e ecologia. Dorine é parte de tudo o que ele foi.
Certos de que não poderiam viver um segundo sequer sem o outro, o casal se suicidou em 2007.

André Gorz e Dorine

2 comentários:

  1. Nossa, que história bonita e trágica desses dois :~
    Gosto de histórias reais também, dá uma outra perspectiva quando sabemos que aquilo não é mera ficção. O livro parece bem interessante!

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  2. Sim, é lindo o livro e super bem estruturada a narrativa.
    Virou livro de cabeceira, sabe? Volta e meia folheio.
    É o tipo de história real que nos faz voltar a ter esperança em sentimentos bons (ainda que o final tenha sido "trágico").
    Penso que pelo menos, diferente de Romeu e Julieta, eles já tinham vivido plenamente a vida e o amor dos dois.

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